segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

"COMENTÁRIOS AO PAI-NOSSO"

Por Elisa Cintra



Uma grande parte deste escrito foi inspirada nas reflexões de Simone Weil sobre a oração do "Pai Nosso". No final do texto coloquei a minha tradução do texto original de Simone Weil.

Ela afirma que ninguém pode recitar esta oração sem sentir que algum tipo de mudança, ainda que infinitesimal, aconteça nele.

Eu acrescentaria que pode ser uma mudança infinitesimal do próprio ódio em amor, do sentimento de isolamento para um sentimento de pertencer, de confiar.

Nossa capacidade de amar e de ser amado é tão pequena e frágil que precisamos nos endereçar a algum ponto do universo de onde toda a capacidade de amar tem sua origem.

Este ponto é aqui chamado "Pai Nosso".

Um agnóstico poderia recitar esta oração como um poema, com toda a sua atenção de forma a endereçar para este ponto o seu desejo de amar e de ser amado e também o seu medo, e as suas dúvidas.

O Pai é o ponto metafórico de toda origem. Precisamos de uma fonte de amor fora de nós mesmos para nos alimentar e para preencher as lacunas de nosso amor humano., precário.





"Pai Nosso, que está nos Céus"



De que forma eu vejo o nosso Pai ?

O Pai é alguém apaixonado (in Love), profundamente mergulhado em um amor inimaginável, fora do tempo e de qualquer fronteira, dirigido a cada pessoa.

Amando, se oferecendo, partilhando, perdoando. Ele é a fonte de todo amor, doação, partilha, perdão.

"Pai Nosso que está apaixonado".

Isto sugere uma nova abordagem: pensar que nosso pai está sempre cantando o seu amor pela humanidade.

E esta é para mim a melhor compreensão destes "Céus": um estado de paixão.

Nós só ficamos apaixonados por um curto espaço de tempo, aqui e ali, e então tudo desaparece com toda a dor que deixa atrás de si.

Nós queremos de novo esta experiencia durante a vida toda; estamos sempre, consciente ou inconscientemente procurando que ela reapareça.

Estar apaixonado e o sentimento de alegria e a sensação de deslumbramento que enche todas as coisas de sentido tem a sua origem em um relacionamento pessoal mas podem também ser despertados

ao olhar para uma paisagem muito bela ou uma obra de arte: música, texto, quadro. escultura ou cinema.

Apaixonar-se está relacionado à experiencia de entrar em contacto com alguma forma da Beleza, da Verdade, da Justiça, do Bem. Ainda que não saibamos definir estas realidades.



O amor de Nosso Pai é todo criativo, dando nascimento e concebendo, é a fonte de toda a criatividade.

Este Deus cujo amor é tão perfeito e alegre poderia ser considerado alguém satisfeito consigo mesmo, fechado em sua mônada de puro amor, para sempre inacessível a tudo que se acha fora dele.

Esta seria uma forma narcisista de amor, mas a natureza de seu amor é toda diferente: é um amor da alteridade, aberto ao que é diferente Dele,

criando diferença, em um estado de pura atenção às diferenças.

Ele se rejubila na diferença.

Ele não é indiferente à miséria, à doença, à ignorância e à condição mortal dos homens.

Sua mais perfeita revelação é Cristo, o Logos, que entrou na condição humana para experimentá-la até sua máxima radicalidade e tragicidade.

A palavra Logos do grego foi traduzida em latim por Palavra, Verbo ou Nome.





"Santificado seja o Vosso Nome"



"Vosso Nome" é o Filho (The Son, the Sun), o Logos, a encarnação e a mais perfeita manifestação do Seu Amor.

Logos quer dizer "luz" e "inteligência" ao mesmo tempo: a inteligência capaz de ligar, relacionar, comunicar, a inteligência que conduz ao insight e à descoberta.

Precisamos desta inteligência para esclarecer a nossa ignorância e para nos fazer entender a natureza do seu amor pela condição humana mortal e desamparada.

Todos nós estamos em busca de um ideal de perfeição em termos de Poder e Força, e neste sentido somos todos, de alguma maneira mais ou menos oculta,

"fundamentalistas", absolutamente apegados a nossos pontos de vista, vivendo em sistemas fechados e prontos a entrar em luta com os outros "sistemas fechados".

Para dissolver nosso fundamentalismo precisamos de uma forma de amor totalmente outra, diferente de tudo que nossa imaginação pode conceber.



O Filho (The Son, the Sun) nos revela a natureza do Pai e de seu amor. Ele é todo revelação e sabedoria, a fonte de toda a sabedoria.

Ele assumiu a condição humana em seu mais radical desejo de amar e ser amado,

ele se transformou nesta infinita sede e nesta fome de nosso amor,

ele se coloca em atitude de súplica, ele implora por nosso amor como um pobre pede esmola.

Isto é tão difícil de entender pois dissolve nossas ideias de auto-suficiência, onipotência e majestade divinas.

Algumas obras de arte que mostram alguém apaixonado, em uma atitude de súplica a seu ou à sua amada,

podem nos aproximar à realidade deste Logos luminoso em sua atitude de súplica.





"Venha a nós o Vosso Reino".



Que reino é este? O que estamos pedindo quando dizemos estas palavras?

O reino é um estado de ser interior, um estado de poder amar e estar sendo amado. Estado interior que imediatamente se torna exterior, se expande, contagia.

Este amor é o trabalho de Logos e Eros, que são doadores de sentido e valor.

Ao mesmo tempo em que este amor é "todo plenitude", ele exige uma aceitação da condição humana da falta e da mortalidade, dor e miséria.

"Onde a escuridão e a ignorância reinam possa o reino de luz e sabedoria vir".

Este reino traz o paradoxo de Eros, de plenitude e de falta.

Eros na Mitologia Grega é considerado como sendo o fruto de Poros (=plenitude) e Penia (falta, miséria).

Amar e desejar colocam-nos nesta tensão entre a plenitude e a miséria, a falta.

Antecipa-se a plenitude e ao mesmo tempo sente-se o desamparo, a falta da pessoa amada: isto nos faz pobres, miseráveis.

A frase "Venha a nós o vosso Reino" se refere a uma perpétua espera pela chegada de um Reino ainda por vir, embora possa estar sempre vindo;

refere-se a uma sempre crescente sede (e capacidade, embora vacilante) de amar em liberdade e generosidade.

O horizonte de um "vir" está sempre em movimento, criando inesperadas formas de futuro.





"Seja feita a Vossa Vontade assim na terra como no Céu"



Que Vontade é esta?

Não pode ser outra além do dinamismo de um amor passional dirigido à individualidade de cada pessoa.

Deus ama de maneira apaixonada cada pessoa com absoluta intensidade e absoluto respeito por estas individualidades.

Seu desejo é trazer cada pessoa para fora da insignificância, do esquecimento, da indiferença, do abandono, do desespero e do desamparo.

Seu amor é doador de sentido e valor. Ele cria um campo de confiança que permite que possamos habitar um mundo de possibilidades abertas.

Abre o futuro. Esta é a Vontade que pedimos que seja feita assim na terra como no Céu. Abre para o Céu e enraíza na Terra.

Cria comunidade e produz insight.

É uma tendência sutil e irresistível de uma voltagem incrivelmente alta.





"O pão nosso de cada dia nos dai hoje"



A palavra em grego para este pão é "epiousion" , pão supra substancial, o que quer dizer que precisamos de uma nutrição super substancial para viver sob a Lei do Amor

e ele tem que ser entregue cada dia, da mesma forma que o maná no deserto. Não é possível armazenar este pão.

Em inglês, "bread e breath" (pão e respiração) soam de modo parecido, este pão é também uma nova inspiração, a cada instante em que inalamos o ar.

Pedimos por uma porção diária desta fabulosa energia – inteligência e entendimento – contida no Logos: ela é um principio de simbolização e transformação de nossas tendências gravitacionais.

O pão é o princípio de todos os alfabetos, letras, palavras, textos, narrações, teorias e pensamentos.

É o Logos – a Palavra – feita Carne.

Precisa ser comido para que nossa carne se torne Palavra de inteligência.





"Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos quem nos tem ofendido"



O "Pai Nosso" inteiro é rezado no plural, dentro da perspectiva de uma comunidade.

Aqui todas as "ofensas" da humanidade são reunidas na mesma categoria e tornam-se equivalentes.

Não deveríamos nos preocupar em estabelecer pequenas diferenças entre as várias ofensas humanas,

Mas deveríamos entender que todas as acções e pensamentos praticados fora da lei do amor são inúteis e podem ser igualmente considerados como "ofensas".

Isto nos leva a considerar que cada uma das ofensas diz respeito a pessoas, a grupos de pessoas, dentro de uma infinita rede de inter-relações.

O perdão é necessário para quebrar a lei do "Karma", o eterno vínculo entre crime e castigo.

Perdoar é quebrar este eterno retorno do mesmo: permite um começo novo.

Quais são as piores ofensas contra os outros? Penso que todas as ofensas têm origem em uma atitude de julgamento moral dos outros.





"Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal"



A maior tentação é perder toda a confiança em nossa possibilidade de amar e de sermos amados – um estado de depressão – quando tudo se torna sem valor e desinteressante.

Toda a confiança em uma possibilidade de transformação e renovação é perdida e ninguém mais merece a nossa confiança. O mundo das pessoas se torna hostil e nos afastamos.

A morte é então desejada como o fim de uma luta aparentemente mal sucedida para encontrar algum significado. Desistimos de viver.

Há um sentimento paranóico de que tudo e todos estão contra mim.

A tentação e seu ponto mais radical, aqui chamado de "mal", é cultivar o pensamento de que não existe nenhuma forma de amor confiável.

Que Deus nos abandonou à nossa miséria. É uma situação radical de pobreza, humilhação, rejeição e solidão, o sentimento de que nenhuma confiança e nenhuma esperança sejam viáveis.

O que é o mal senão o mergulhar na face mais escura deste estado? Na completa ignorância da verdade, sob violência e tendo que viver sob servidão, tortura,

tendo perdido toda a possibilidade de pensar,

desejar, lutar pela própria liberdade?

Este foi o terrível sentimento de Cristo na Cruz quando se sentiu abandonado por todos os seus amigos e por seu Pai bem-amado. Ele quis que isto acontecesse porque queria experimentar

o extremo mais radical da miséria humana.

Neste ponto ele se entregou mais profundamente nas mãos do Pai Nosso, para além de toda possibilidade de compreender o que estava acontecendo.

Isto ensina que quando não conseguimos entender mais nada, nos tornamos pura ignorância,

o melhor remédio é mergulhar mais fundo na origem de toda Inteligência.

Este ato de confiança vai nos livrar do mal.

Amem.